A . — Quisera saber como és feito por dentro … Como é a tua vontade por dentro, que coisas há naquela parte do teu sentir que tu não medes que sentes.
E . — Tão feminina nisso … E és da matéria das coisas irreais!
A . — Quando levantas um braço eu queria saber porque coisas
do além, tu levantas esse braço … O que há por detrás de o tu quereres
levantar e de saberes porque o queres levantar? Vim contigo há tanto e
não sei quem tu és… Reparo às vezes nos pequenos gestos que fazes e vejo
quão pouco sei de ti …
E . — Eu próprio não sei quem eu sou … Meus gestos são entes
estranhos quando reparo neles, e sombras incertas quando não reparo.
São uma perpétua revelação a mim próprio. Sou tão exterior a conhecer‑me
como o mundo externo … Entre o meu querer erguer um braço e ele
erguer‑se vai um intervalo divino … Transponho, entre pensar e falar, um
abismo sem fundo humano.
A . — Eu sou simples como uma pedra no caminho ou uma rosa numa roseira.
E . — És simples porque não te espelhas em ti. Uma pedra no
caminho é (atónita) um mistério igual a Deus … Uma rosa numa roseira é
tão compreensível como a Vida …
A . — Olho‑te e amo‑te e não te possuo nunca. Floriram em
(…) as rosas do meu jardim … Acompanho‑te e perco‑te sempre que olho
para ti.
E . — Eu próprio não me acompanho … como poderás tu
acompanhar‑me? Vejo meus pés andar como quem vê passar um cortejo humano
nas distâncias e na noite … Reparo na minha sombra como numa face
desconhecida que espreitou de fora à janela da minha moradia … Não
compreendo nada … Não compreendo nada.
A . — Mas há coisas que tu compreendes e que nunca me
confessas. Falas‑me dos teus amores e dos teus desejos mas eu sinto que
guardas para ti, fechada na mão, uma jóia qualquer do teu sentimento.
Porquê se eu te amo e se somos um só?
E . — Porque nunca somos um só. Aquilo que eu não te digo,
apesar de habitarmos juntos este palácio e juntos pensarmos neste
jardim. Segredo‑o a mim quando estou mais só e nem ergo a voz, para que
me não ouça não sei quem que me não pode ouvir.
A . — Sou a tua Alma e a mim‑próprio não me contas tudo!
Passou ontem uma brisa leve pelo jardim. Trouxe perfumes de outros
jardins […]
Fernando Pessoa (1914)