sábado, 24 de novembro de 2012

Diálogo na Sombra.


A . — Quisera saber como és feito por dentro … Como é a tua vontade por dentro, que coisas há naquela parte do teu sentir que tu não medes que sentes.  

E . — Tão feminina nisso … E és da matéria das coisas irreais!

A . — Quando levantas um braço eu queria saber porque coisas do além, tu levantas esse braço … O que há por detrás de o tu quereres levantar e de saberes porque o queres levantar? Vim contigo há tanto e não sei quem tu és… Reparo às vezes nos pequenos gestos que fazes e vejo quão pouco sei de ti …

E . — Eu próprio não sei quem eu sou … Meus gestos são entes estranhos quando reparo neles, e sombras incertas quando não reparo. São uma perpétua revelação a mim próprio. Sou tão exterior a conhecer‑me como o mundo externo … Entre o meu querer erguer um braço e ele erguer‑se vai um intervalo divino … Transponho, entre pensar e falar, um abismo sem fundo humano.

A . — Eu sou simples como uma pedra no caminho ou uma rosa numa roseira.

E . — És simples porque não te espelhas em ti. Uma pedra no caminho é (atónita) um mistério igual a Deus … Uma rosa numa roseira é tão compreensível como a Vida …

A . — Olho‑te e amo‑te e não te possuo nunca. Floriram em (…) as rosas do meu jardim … Acompanho‑te e perco‑te sempre que olho para ti.

E . — Eu próprio não me acompanho … como poderás tu acompanhar‑me? Vejo meus pés andar como quem vê passar um cortejo humano nas distâncias e na noite … Reparo na minha sombra como numa face desconhecida que espreitou de fora à janela da minha moradia … Não compreendo nada … Não compreendo nada.

A . — Mas há coisas que tu compreendes e que nunca me confessas. Falas‑me dos teus amores e dos teus desejos mas eu sinto que guardas para ti, fechada na mão, uma jóia qualquer do teu sentimento. Porquê se eu te amo e se somos um só?

E . — Porque nunca somos um só. Aquilo que eu não te digo, apesar de habitarmos juntos este palácio e juntos pensarmos neste jardim. Segredo‑o a mim quando estou mais só e nem ergo a voz, para que me não ouça não sei quem que me não pode ouvir.

A . — Sou a tua Alma e a mim‑próprio não me contas tudo! Passou ontem uma brisa leve pelo jardim. Trouxe perfumes de outros jardins […]

Fernando Pessoa (1914)